Caros Fundanenses
Passaram já
trinta e três anos, por isso essa madrugada iniciadora da democracia,
da liberdade, do desenvolvimento, da cidadania, essa madrugada que
trouxe de volta Portugal e os portugueses ao mapa-mundo da dignidade
nos pode parecer já tão distante. No entanto, ela está, e tem de
continuar a estar, sempre presente. Por essa razão a minha primeira
palavra é de saudação a todos quantos, nas grandes e pequenas
iniciativas, neste concelho e por esse Portugal fora, com empenho,
inteligência e imaginação, tudo fazem para que, não só a data, mas
fundamentalmente o espírito de Abril se mantenham presentes na nossa
vida colectiva.
É a eles, a
essas iniciativas populares, mais do que a estas cerimónias, mais ou
menos oficiais, ou a estas palavras que, apesar de tudo, não são apenas
de circunstancia, que se fica a dever o facto de as celebrações do 25
de Abril não se ficarem, como muitos pretendem, em mais um feriado com
alguma pompa mas cujo profundo significado alguns procuram escamotear.
O 25 de Abril
não se fez para olhar para o passado, mas sim para preparar um futuro
melhor, mais digno e mais humano. No entanto, só é possível construir
um futuro sólido, se este for bem alicerçado na memória. Não é portanto
qualquer sentimento passadista, mas a preocupação com o futuro, que nos
faz evocar o passado. É que, meus amigos, o que se tem verificado nos
últimos tempos é preocupante. Sub-repticiamente, paulatinamente,
procura passar-se a ideia que o fascismo, em Portugal, foi um regime
brando, autoritário talvez, mas com certeza civilizado. Assim, e
jogando com a desinformação nomeadamente dos mais jovens, vão-se
criando as condições para todos os ataques e destruições ao que de
melhor Abril nos trouxe e, quem sabe, como reacção a algumas praticas
menos dignas de alguns políticos actuais e à insatisfação com as
políticas que têm vindo a ser seguidas, no meio do nevoeiro da confusão
criada, surjam as condições para o aparecimento de algum salvador
messiânico.
Não será já o
tempo de Pinoches, Francos ou Hitlers, mas a Democracia só será um
regime perene se todos os dias e cada dia cuidarmos dela. Cuidar dela
passa também pela denúncia dos crimes que contra ela foram e são
cometidos. Por isso importa dizer e relembrar que o fascismo, em
Portugal, foi em muitos e variados aspectos um regime criminoso. Por
isso o escamotear e o esconder desta realidade, nos dias de hoje, é
objectivamente ser conivente com esses crimes, e configura uma pratica
também ela criminosa.
Por isso importa aqui e agora relembrar.
O fascismo, em
Portugal, matou! Matou dezenas e dezenas de homens e mulheres pela
simples razão de lutarem pela democracia. Matou através da tortura como
Joaquim Lemos Oliveira em 1957ou Manuel Agostinho Góis em 1967.
Também matou em
consequência das péssimas condições das prisões ou da negação de
adequado tratamento médico como foi o caso de Bento Gonçalves ou
Guilherme da Costa Carvalho e muitos outros.
Matou nas sedes
da Pide e simulando “suicídios” como é o caso de José Moreira ou Raul
Alves. (a esposa do embaixador do Brasil assistiu ao crime de uma
janela da Embaixada e, emocionada, escreveu ao Cardeal Cerejeira a
relatar o sucedido. Cerejeira limitou-se a transmitir-lhe a resposta
que obtivera do ministro do Interior: «Não há motivo para ficar
impressionada. Trata-se, apenas, de um comunista sem importância»).
Matou disparando
sobre quem participava em manifestações (fosse pelo pão ou pela
liberdade) como foi o caso de Catarina Eufémia ou Cândido Capilé.
Mas o fascismo
matou também de forma programada e selectiva como foi o caso de Dias
Coelho na rua, o médico Carlos Ferreira Soares no seu consultório com
rajadas de metralhadora, o General Humberto Delgado atraído a uma
cilada armada pela Pide, isto para não falar da eliminação de Eduardo
Mondelane e de Amílcar Cabral.
E não se incluem
aqui os cerca 10 mil mortos na Guerra Colonial e todos os outros que
ainda hoje padecem das sequelas físicas e psicológicas dessa guerra
injusta e criminosa.
O Fascismo
Português foi pois um regime criminoso e assassino. Os seus
responsáveis foram vários e alguns deles ainda andam entre nós. Mas o
principal responsável, e que superintendia directamente pela PIDE, era,
convém não esquecê-lo e convém lembrá-lo à juventude portuguesa,
Salazar. O ditador que de forma sublime, num dos seus poemas, Sofia de
Melo Breyner assim retratou:
O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e os seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.
Bastaria falar
de assassinatos, mas os crimes do Fascismo português não se ficaram por
aqui. E não vale a pena adoça-los com exemplos caricaturais que nos
fazem rir, como as licenças de isqueiros ou a proibição da Coca-Cola. É
que o assunto é demasiado sério.
Eram sérias as
condições infames das prisões políticas e as torturas infligidas aos
presos políticos. A tortura de sono de dias seguidos ou as marcas dos
espancamentos que, muitos anos depois, ainda testemunhei nas pernas do
meu amigo José Pedro Soares, não foram quaisquer “meia dúzia de
safanões a tempo” como os classificava Salazar.
Era coisa séria
a falta dos mais elementares direitos de cidadania para as mulheres,
que as impedia por exemplo de obter passaporte ou se ausentar do país
sem a autorização do marido, ou que impedia as enfermeiras de se
casarem.
Foi coisa séria
a censura castradora do desenvolvimento cultural e científico da
Sociedade Portuguesa. A censura que nos impedia de ouvir músicas de
Zeca ou de Adriano. Censura que moveu um processo-crime a Aquilino
Ribeiro por ter escrito “Quando os Lobos Uivam”. Censura que, em apenas
quatro dias, apreendeu 70 mil títulos à Europa-América, em dois anos
subtraiu à Seara Nova milhares de contos de livros. Censura que, entre
1964 e 1967, dos 1301 filmes apresentados, proibiu 145 e autorizou, com
cortes, 693.
Criminosa foi
também a política educativa do Fascismo português. As ondas de choque
dessa política, que passou pela redução da escolaridade obrigatória e
pelo aumento do analfabetismo, ainda hoje se fazem sentir. É hoje óbvio
para todos, que a base de um desenvolvimento económico sustentado de
qualquer País assenta numa população activa instruída e culta. Os
resultados negativos ao nível da instrução e cultura levam décadas a
ser corrigidas, mas as suas consequências ao nível do desenvolvimento
económico são muito mais dura doiras. E este é, em minha opinião, o
mais grave crime cometido pelo fascismo português.
Muito mais
haveria a referir, e denunciar, dos crimes cometidos pelo fascismo
português, e das suas consequências. Mas para terminar e sumariar
refiro o Retrato Social que Barreto faz do Portugal de Salazar:
Portugal podia orgulhar-se do ditador com mais anos no poder;
apresentava as mais altas taxas de analfabetismo e mortalidade
infantil; o menor número de médicos e enfermeiros por habitante; o mais
baixo rendimento por habitante; a menor produtividade no trabalho; o
menor número de estudantes no ensino básico e superior; o menor número
de pessoas abrangidas pelos sistemas de segurança social, a menor
industrialização e a maior população agrícola dos países europeus
ocidentais.
É este regime
que alguns pretendem branquear, é este regime que alguns pretendem
absolver. É obrigação daqueles que sinceramente defendem a democracia,
a liberdade e o desenvolvimento denunciar para que não mais volte a
acontecer.
Por determinação
e coragem e talvez, também, por desistência e incapacidade de outros,
coube aos comunistas portugueses a maior responsabilidade na luta pela
democracia e liberdade em Portugal. Coube-lhes também, e
consequentemente, a maior parcela de sacrifícios, nomeadamente em
número de anos de prisão e mortos.
Quanto mais não
fosse por respeito à verdade histórica, é nossa responsabilidade,
enquanto eleitos do PCP nas listas da CDU, dar o nosso contributo para
que, também neste importante aspecto, se não faça o falseamento da
nossa história recente. A repressão política do fascismo português,
talvez pela nossa idade, apenas a sentimos ou já na fase de agonia do
regime ou de forma indirecta, no entanto enquanto comunistas não
podemos deixar de nos sentir orgulhosos do contributo dos nossos
camaradas e dar testemunho público do orgulho que sentimos em sermos a
força política mais determinante na construção do Portugal Democrático.
Mas que é feito
hoje em dia das promessas e esperanças renascidas nesse dia? Muito
daquilo que, com luta conquistamos tem sido paulatinamente destruído ao
longo destes 33 anos. A lista é longa mas vale a pena referir um ou
dois aspectos desse Abril que nos têm roubado.
Acontecimentos
recentes têm-nos lembrado que a liberdade de imprensa é algo pouco
querido de qualquer poder, por mais socialista e democrata que se
pregoe. A pressão exercido pelo Primeiro-ministro sobre órgãos de
comunicação social veio a público, por isso, e dada a sua natureza
inaceitável, foi por todos condenada. Este ridículo episódio não é
porém o que de mais grave se passa ao nível da tentativa de manipulação
pelos poderes políticos e económicos dominantes. Uma análise, mesmo que
superficial, aos tempos dados e à forma como são tratadas as
iniciativas e os protagonistas do movimento sindical e dos partidos de
esquerda nos grandes órgãos de comunicação social, bastaria para o
demonstrar.
Dou-vos um
pequeno exemplo. Aquando da apresentação da uma das candidaturas a
Secretário-geral da FENPROF, nem sequer um jornalista dos grandes
órgãos de comunicação Social esteve presente embora alguns tivessem
confirmado a sua presença anteriormente. Razões: ordens superiores. Não
será difícil imaginar que superiores são esses. É que a FENPROF, sendo
a organização sindical mais representativa da chamada classe média em
Portugal, é uma força que conviria que estivesse bem domesticada.
Felizmente os professores deram a resposta adequada.
Acrescente-se
que as últimas notícias relativas ao controlo dos grupos económicos
dominantes no sector da comunicação social não nos pode, de forma
nenhuma, deixar descansados.
Porém os
retrocessos de Abril não se cingem, infelizmente, à liberdade de
informar e ser informado. Ao nível das conquistas sociais, a sanha
destruidora, deste como de anteriores governos tem sido inexcedível.
Quais cavaleiros andantes do ultraliberalismo galopante, em busca do
santo Graal da redução do deficit, varrem à sua frente tudo o que lhes
cheire a direito social.
Os trabalhadores
da Administração pública, os professores, os alunos do ensino superior,
os desempregados, os reformados, os trabalhadores com contratos
precários bem o sabem. Mas sabem-no também as populações do interior
que vêem fechar maternidades, urgências e outros serviços.
Numa época em
que o desenvolvimento tecnológico permitiu acumular riqueza como nunca
até aqui se verificara, ela encontra-se cada vez mais mal distribuída
dando origem a gritantes desigualdades sociais. E as políticas seguidas
em Portugal estão a contribuir, cada vez mais, para o agravar destas
desigualdades.
Onde está a solidariedade, a fraternidade e a justiça social, nesta democracia que estamos a construir?
Onde está a justiça social de uma democracia que nega o direito a uma velhice e a uma reforma condigna?
Onde está a
justiça social de uma democracia que fecha maternidades, urgências, não
abre centros de saúde onde são necessários, mas incentiva negócios
privados na saúde, que dizem, têm perspectivas de lucro só superadas
pelo negócio das armas?
Onde está a
justiça social de uma democracia que, com Bolonha, reduz os anos de
escolarização, desvalorizando a licenciatura, mas exige, para o
exercício de uma profissão, um mestrado pago?
Onde está a justiça social do trabalho precário e sem direitos?
Vivemos momentos
difíceis. Os retrocessos e as derrotas são campo fértil para o
desânimo. As políticas anti-sociais impostas por um governo do Partido
Socialista, de forma mais gravosa que os governos de direita fizeram,
ajudam a criar a sensação da inevitabilidade dos recuos sociais.
Contudo, os
trabalhadores e as suas organizações sindicais, bem como as populações,
os seus representantes e outras forças sociais têm demonstrado que é
possível resistir, que é possível inverter esta política destruidora.
Pois tal como ontem, também hoje só resistindo, Abril vencerá!
Desta tribuna
saudamos os que não se acomodam e resistem, e claramente afirmamos que,
para que Abril se cumpra, na sua plenitude é, de facto necessário, como
diria o Zeca, mudar de rumo e seguir outro carreiro.
Viva o 25 de Abril.
Fundão, 25 de Abril de 2007
Luís Lourenço
Eleito pelo PCP nas listas da CDU na Assembleia Municipal do Fundão